‘Laboratório vivo’, oásis mexicano corre o risco de desaparecer

 ‘Laboratório vivo’, oásis mexicano corre o risco de desaparecer

Um raro ecossistema de zonas úmidas no deserto de Chihuahuan, no norte do México e que pode conter informações chave sobre as origens da vida na Terra – até mesmo sobre a possibilidade de vida em Marte –, corre sério perigo de desaparecer caso a água continue a ser extraída para o agronegócio.

Com 200 km de extensão, o Vale de Cuatrociénegas – “vale dos quatro pântanos” –, localizado 1 mil km ao norte da Cidade do México, é um complexo sistema de zonas úmidas ancestrais, com nascentes ricas em minerais, córregos, lagos, pântanos e piscinas de água azul turquesa, conhecidas como “pozas”, alimentado por canais subterrâneos naturais e cercado por uma cadeia de montanhas com picos que ultrapassam 3 mil metros de altura.

“Esta é a nossa única janela para entender o passado do planeta, porque a vida emergiu aqui, e nós não estamos cuidando dela como deveríamos”, disse à IPS Valeria Souza, uma pesquisadora do instituto de ecologia da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). “Em vez de tentar entender como o ecossistema funciona, as autoridades têm se dedicado a explorá-lo e a extrair o máximo que podem, em troca de nada”, queixou-se ela.

Souza, que recebeu inúmeros prêmios ambientais, estuda a área desde 2000, ao lado de outros cientistas do México e do exterior.

A extraordinária biodiversidade e número de espécies endêmicas em Cuatrociénegas tornam o seu ecossistema tão singular quanto o das Ilhas Galápagos, no Equador. A bacia, declarada área natural protegida em 1994, abrange 84,350 hectares, e é lar para mais de 70 espécies endêmicas – o que significa que elas não podem ser encontradas em nenhum outro lugar no planeta – incluindo a única tartaruga-de-caixa aquática no mundo e várias espécies de peixes tropicais.

“Muita água é removida e transportada para outros vales para o cultivo de alfafa, o que requer uma grande quantidade de água”, afirmou Francisco Valdés, ambientalista e professor no Instituto Tecnológico de La Laguna, na cidade de Torreón, próximo à reserva natural. “Desde 2000 nós temos tido vários anos chuvosos e os aquíferos foram reabastecidos, e a água estava correndo nos canais subterrâneos. Mas este ano tem sido muito seco”, contou.

A Comissão Nacional para o Conhecimento e Uso da Biodiversidade diz que o vale está sob ameaça devido à crescente extração da superfície e água subterrânea para irrigação, transformação de habitats, dispersão de espécies exóticas, pastoreio, corte de árvores para lenha, coleta ilegal de cactos, caça de répteis, exploração de pedra de gesso e turismo irregular. Especialistas acusam também a indústria local de laticínios e os produtores de alfafa – usada como alimento de animais – de esgotar os recursos hídricos de Cuatrociénegas.

Cerca de 500 mil cabeças de gado na área produzem 7 milhões de litros de leite por dia para o mercado doméstico e para exportação. No México, são necessários aproximadamente 2.500 litros de água para produzir um litro de leite, de acordo com a “Trilha da Água das Nações”, um relatório da UNESCO-IHE Instituto de Educação sobre a Água.

Autoridade nos recursos hídricos mexicanos, Conagua, diz que existem nove aquíferos na região, que estão todos superexplorados e que fornecem 1.23 bilhões de metros cúbicos de água por ano, enquanto eles são reabastecidos somente com 868 milhões de metros cúbicos por ano. Cuatrociénegas é uma das 55 zonas úmidas prioritárias no México sob a Convenção de Ramsar, acordo intergovernamental de conservação e uso racional dessas áreas e seus recursos, vigente desde 1975.

O esgotamento da “poza” de Churince, o mais antigo lago do ecossistema, é um mau presságio para a reserva, alerta Evan Carson, um biólogo na Universidade do Novo México, nos Estados Unidos. Após suas duas últimas visitas, em março e maio, Carson, que estuda o ecossistema desde 1998, reportou em uma pesquisa “Churince System Status aquatic fauna” (“O estado do sistema de Churince, fauna aquática”) que “neste momento, o sistema de Churince é essencialmente um sistema morto, ao menos em relação à sua condição anterior”.

Ao menos três espécies de peixe e duas espécies de moluscos, todas endêmicas para o ecossistema, podem ter sido “extirpadas deste sistema”, e “espécies ambientalmente mais resistentes também tiveram o tamanho da população reduzida e foram deslocadas na distribuição geográfica do sistema”, escreveu Carson. Ele concluiu sua tese alertando que “deter a extração de água (do ecossistema) pode já ser muito pouco, muito tarde”.

‘Ecocídio’

Embora o presidente Felipe Calderón tenha prometido desde 2007 investir aproximadamente 75 milhões de dólares para preservar a reserva natural, apenas cerca de 8 milhões de dólares foram desembolsados. Em setembro, Conagua assinou um acordo com a Comissão Nacional de Áreas Naturais Protegidas para canalizar 100 litros de água por segundo em Churince, uma quantidade que deveria subir para 300 litros em dezembro. Mas o acordo foi repentinamente cancelado, presumivelmente devido a pressões de grandes produtores agrícolas.

Pesquisadores, cujos alertas no decorrer dos últimos anos recaem sobre ouvidos surdos, recomendam a imediata proibição da extração de água e implementação de projetos alternativos de agricultura, para otimizar o uso da água. “O problema é que as autoridades pensam na água não como algo essencial à vida, mas como algo que pode ser comprado e vendido. Isso tem levado ao “ecocídio”. É impossível reverter o dano, porque as antigas reservas se foram. A água do subterrâneo profundo está se esgotando, e, sem isso, Cuatrociénegas não é nada”, disse Souza.

Prevendo que a área não vai sobreviver mais do que dois verões nas condições atuais, o pesquisador lançou um abaixo-assinado online para impelir o governo a resgatar o ecossistema ameaçado. Até agora ela coletou pouco mais de 3 mil assinaturas. Em setembro de 2010, Souza deu início a um inventário da biodiversidade em um projeto patrocinado pelo escritório mexicano do World Wildlife Fund (WWF) e pela Carlos Slim Foundation para “entender quem vive onde, desde o mais ínfimo vírus até os coiotes, e quem alimenta quem”, explicou Souza.

“Existem interesses econômicos muito poderosos envolvidos aqui”, diz o Professor Valdés. “Mas alfafa não deve mais ser cultivada em Cuatrociénegas, porque a comunidade local não colhe benefícios econômicos a partir dela, e se faz necessário um esforço de reconversão produtiva.”

NASA

A NASA (sigla em inglês para National Aeronautics and Space Administration) está estudando microorganismos em Cuatrociénegas que são similares aos que habitaram o planeta centenas de milhões de anos atrás, para ajudar a entender as origens da vida na Terra. Também considera esta zona úmida útil para descobrir vida em Marte considerando que as condições são aparentemente similares às condições naquele planeta.

A próxima sonda da NASA em Marte, “Curiosity”, será lançada em 25 de novembro com um laboratório de ciência, para explorar uma cratera naquele planeta que Souza – convidado para o lançamento – descreve como “semelhante à Churince”.

*Reportagem originalmente publicada na IPS

 

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