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Jovens denunciam superlotação e até tortura em unidades de internação
Dos 58.764 adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no Brasil, 62,8% cometeram delitos contra o patrimônio.
No fundo de uma cela, um jovem compõe o rap da prisão. “Perdi a adolescência e a juventude no sistema, não aguento mais ouvir o barulho de algema”.
Como funciona o sistema criado para reeducar adolescentes em conflito com a lei?
“Isso aqui era pra ser uma recuperação pra pessoa, né? A gente sai pior do que entra”, diz um jovem.
Denúncias de tortura. “Pisa nos pés, bate nos pés. Deixa só de cueca. Bota a gente dentro de um cubículo, passar dois dias”, revelou outro.
Ambientes imundos. Superlotação. “Aqui não é lugar para ser humano não. É lugar pra bicho”, afirma um menino.
Dos 58.764 adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no Brasil, 18.107 estão internados em unidades como essas. A maioria absoluta, 62,8 %, cometeu delitos contra o patrimônio: roubos ou furtos.
“Eu furtei um litro de uísque”, conta um jovem.
O envolvimento com o tráfico chega a 30%. Entre os delitos contra a pessoa, os assassinatos são 4,1% por cento do total.
“Esses adolescentes estão aqui porque devem estar aqui. O que a sociedade tem que entender é que esse adolescente será devolvido para a sociedade, deve ser reintegrado e socioeducado em muito melhores condições do que entrarem aqui”, diz o promotor de Justiça Júlio Almeida.
A lei diz que o estado deve proteger, recuperar e ressocializar esses jovens.
O Fantástico visitou unidades de internação onde isso deveria acontecer, começando pela Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul.
A unidade é a porta de entrada do sistema em Porto Alegre. Se o adolescente comete o seu primeiro ato infracional grave é para lá que ele é levado. A lei diz que ele teria direito a ficar sozinho num dormitório de nove metros quadrados com banheiro.
Como num presídio, há grades separando as alas. Seriam os dormitórios, na verdade, são celas e nenhum deles tem banheiro.
Canellas – Tem banheiro aí?
Menino – Não!
O material de higiene é racionado. O banho é coletivo. Com capacidade para 60 pessoas, a unidade tem hoje 154 internos.
Canellas – Quantos garotos têm aí dentro?
Menino – Cinco! E ainda vai ter seis nesse quarto, como é que a gente vai dormir aqui?
Os corredores são escuros, as paredes úmidas e mofadas.
Canellas – Faz frio à noite aqui?
Menino – Tem um dormindo na pedra ali, colchão dobrado porque não tem espaço, como é que vai caber cinco ali?
Canellas – Vocês tão em quatro aqui?
Menino – Cinco. O outro tá na escola.
Canellas – A janela não abre? Não abre e não fecha, né?
Nenhuma das celas tem a medida exigida por lei.
Canellas – Essa cela não tem nove metros quadrados?
Promotor – Não. Essa cela tem sete metros e 40 centímetros quadrados.
Encontramos um jovem com sinais de espancamento.
Canellas – Esse olho o que foi?
Menino – Foi polícia.
O adolescente entrou na unidade sem ter feito exame de corpo de delito.
“O guri entra no sistema e ele tem que vir pra cá já constatada a lesão, pra evitar que tenha alguma suspeita que tenha sido aqui dentro”, explica o promotor.
As refeições são feitas dentro das celas porque o refeitório foi interditado por falta de higiene.
“Nós tínhamos problemas com os banheiros, e o problema terminava refletindo no refeitório porque tinha problema de infiltração, enfim, mas que está sendo resolvido isso aí”, afirma Joelza Andrade Pires, presidente da Fund. Antendimento Socioeducativo/RS.
Canellas – Eles se queixam muito do frio, né? O inverno do Rio Grande do Sul não é brincadeira, e as janelas estão trancadas.
Promotor – Tão trancadas. Isso é objeto de um acordo onde, em 180 dias, essa unidade deverá estar inteiramente reformada.
O governo do estado acena com a construção de quatro novas unidades. A Secretaria de Justiça afirma que as obras começam ainda em 2012.
O Fantástico entrou também na Unidade de Atendimento Inicial de Vitória.
Os garotos dormem amontoados, muitos ao lado de banheiros entupidos. “Nós parece (sic) que vive no chiqueiro”, diz o menino.
O Brasil é réu na Corte Interamericana de Direitos Humanos por não garantir a integridade dos adolescentes sob a tutela do estado do Espírito Santo.
Em fotos tiradas em abril deste ano, jovens aparecem dormindo algemados. Em celas infestadas de mosquitos, os internos queimam a espuma do colchão para espantar os insetos.
“Sai fumaça e espanta os mosquitos”, diz o menino.
Na unidade feminina, em Cariacica, encontramos adolescentes que estão há meses em celas escuras e cheias de infiltração.
Canellas – Você tá grávida?
Menina – Tô.
Canellas – Quantos meses?
Menina – Cinco.
O governo do Espírito Santo informou, em nota, que as duas unidades mostradas na reportagem, a masculina e a feminina, serão desativadas. Disse ainda que a denúncia na Corte Interamericana reflete uma situação antiga, de 2009.
No Centro de Atendimento ao Menor de Aracaju, há jovens encarcerados em solitárias.
“Tem dois meninos que a ordem foi não misturar com nenhum”, diz um homem.
Encontramos este jovem numa cela sem banheiro.
Canellas – Quanto tempo você está nessa cela?
Menino – Rapaz, já tem 40 dias.
Depois do almoço, ele usa o prato da quentinha como privada. E passa dias a fio dobrando papéis que não serão usados para nada. Tarefa inútil que lhe foi imposta apenas para que ele tenha o que fazer.
O governo de Sergipe diz que a orientação é para que os internos sejam tratados com dignidade e que o não cumprimento desta rotina será apurado por sindicância.
No Instituto Padre Severino, no Rio de Janeiro, ouvimos denúncias de tortura e espancamento.
“Quando eles bota (sic) pra esculachar, bota todo mundo ali no quadrado, manda todo mundo sair pelado, bate na cara”, dizem os meninos.
O Departamento de Ações Socioeducativas do estado do Rio diz que as denúncias serão apuradas. E que as unidades têm câmeras de vídeo que filmariam as agressões se elas tivessem ocorrido.
Em Porto Velho, no Centro Socioeducativo 2, um desabafo na parede: “Só a morte pode me libertar”.
Os internos têm de se empoleirar para escovar os dentes, aproveitando o único fio de água que escorre pela janela.
A descarga do banheiro é o funcionário que dá no lado de fora. A instalação elétrica é repleta de gambiarras.
Em nota, a Secretaria de Justiça de Rondônia diz que está fazendo reformas e adaptações para melhorar a ventilação. Além de reparos nas estruturas hidráulica e elétrica.
A qualidade da comida também gera violentas reclamações aos funcionários.
Conflitos entre internos e agentes podem acabar em rebelião. Como a de fevereiro do ano passado, no Centro Socioeducativo de Sete Lagoas, em Minas. Imagens inéditas, que o Fantástico mostra em primeira mão.
O que determina o comportamento desses jovens? Se há um traço comum entre os internos é a desestruturação da família.
Canellas – Sua mãe ta presa, né?
Menino – Tá presa.
Canellas – E você tem contato com ela?
Menino – Não. Eu morei com a minha mãe só até os dois anos.
Canellas – E o seu pai vem te visitar?
Menino – Não.
O pai o espancava, por isso ele fugiu de casa. “Pra mim ter um prato de comida pra comer e um teto pra morar eu comecei a vender uma droga pros outros pra poder sobreviver, com 11 anos”, diz o menino.
Vivendo nas ruas de Porto Alegre, sem frequentar a escola, ele foi flagrado três vezes vendendo drogas em bocas de fumo.
“Muita gente acredita que um menino como você, de 17 anos, que passou aqui pela terceira vez não tem mais solução. Você sabe que tem gente que acha isso né?”, pergunta Canellas.
“Eu acho que isso aí de não ter mais solução é uma palavra muito forte, porque se eu quero mudar eu vou mudar. Se eu botar na minha cabeça que eu vou mudar, eu quero, eu posso e eu vou. A oportunidade que viesse pra mim, qualquer oportunidade eu iria agarrar, porque é uma oportunidade, e eu não posso desperdiçar, é uma oportunidade pra largar o crime de mão”, diz o menino.
Geração de oportunidades é o que propõe o Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Para a organização, a ênfase na educação e na oferta de caminhos para mudar de vida é a chave da recuperação dos jovens em conflito com a lei.
“Por mais óbvio que pareça que se aquela criança for tratada de forma indigna ela tende a se revoltar e vai ser pior para a sociedade, isso não fica claro na compreensão das pessoas. O sentimento é irracional: ele é um monstro, eu quero que ele se afaste de mim, eu quero que ele se afaste do mundo social e, no limite, eu quero que ele seja eliminado”, diz Jaílson de Souza e Silva, geógrafo do observatório de favelas.
Michelle Félix correu o risco de ser eliminada. Hoje quer mudar o mundo.
Canellas – Como é que se muda o mundo?
Michelle – Eu acho que fazendo a diferença. Na atitude, no pensamento, na opinião.
Ela ficou internada por mais de um ano por envolvimento com o tráfico. Mas um projeto do Degase, o órgão responsável pela aplicação de medidas socioeducativas no Rio de Janeiro, a transformou em apresentadora. “É a primeira TV socioeducativa do mundo”, conta.
Ela foi até para Brasília entrevistar políticos. “E a TV Novo Degase é uma janela das grades para sociedade”, explica.
E aprendeu a ter olhar crítico sobre o mundo. “Será que Brasília tem comunidade? Favela?”, questionou. Como aprendiz de repórter, descobriu as contradições da vida. “Estamos no outro lado de Brasília, um lado sem vigilância, sem moradia, sem saúde, sem saneamento básico”.
E usou os ensinamentos da TV Novo Degase para se convencer de que podia mudar.
“A gente é prova disso. A gente passou pelo sistema, e hoje a gente ta aí trabalhando e ganhando dinheiro com isso. Por que não pode?”, conta Michelle.
Ninguém mais do que o ex-interno Murilo Barcellos sabe o quanto um jovem pode mudar. “Comecei a me perder na rua com as amizades”, conta. Ele tinha 17 anos quando tramou um assalto. Só que a vítima era um experiente policial da PM gaúcha, Antônio Brasil, que reagiu dando três tiros na perna rapaz.
“Ele pegou, me virou, e não sei o que ele olhou nos meus olhos, botou a arma na minha boca, foi pra me matar eu acho, não sei o que falaram na cabeça dele, eu sei que fechei os olhos, pensei na minha mãe, e não, não foi”, conta Murilo.
Murilo ficou oito meses cumprindo medida socioeducativa. “Uma lição de vida. Eu achei uma lição”, diz Murilo.
Mas ele nunca imaginou que ficaria frente a frente com o policial que poupou a sua vida. Foi durante a audiência do projeto de Justiça Restaurativa em que a vítima, o autor do delito e as duas famílias se reúnem para falar sobre o episódio.
Na época, Murilo ainda era interno, por isso ninguém é identificado no vídeo da Justiça gaúcha.
“Eu peço desculpas pra ele na frente de todo mundo, da família dele que está aqui na frente agora”, diz Murilo.
“Não existe a mínima mágoa. Eu gostaria muito que o teu pai e a tua avó, até a tua madrasta, olhassem pra ti com orgulho, que nem eu olho pro meu filho”, afirma o ex-policial.
Salete dos Santos, a avó de Murilo, contou o que disse para o policial no dia da audiência:
“Moço, meu neto é gente boa, ele nunca fez essas coisas”, revela a avô.
“A sinceridade tava explícita nos olhos dela, o que ela queria em relação ao neto. A gente aprende a ter carinho pelas pessoas, pelos gestos”, conta Antônio Carlos Brasil Conceição, ex-policial.
A audiência provocou uma revolução na vida de Murilo.
“Acho que a minha vida tem antes daquilo e depois daquilo. Pra mim ele foi um anjo da guarda pra mim. Se não tivesse acontecido aquilo comigo eu podia estar pior”, diz Murilo.
As duas famílias ficaram amigas. Brasil tornou-se um conselheiro frequente. E Murilo, hoje com 23 anos, prospera à frente de uma pequena empresa de transportes de carga. “Eu penso grande”, diz o jovem.
Canellas – Tá ganhando dinheiro?
Murilo – Olha, dá pra viver.
Canellas – É um empresário?
Murilo – Micro-empresário.
O que dizer quando se tem o futuro a construir? “Só alegria agora”, diz a avó de Murilo.
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