O Dilema do Sacristão

 O Dilema do Sacristão

O vigário era um homem sério. Bem preparado nos tempos dos bons seminários,conduzia a paróquia com competência. Os resultados eram satisfatórios para obispo, que tinha pouco com o que se preocupar. A aceitação do vigário era alta entre beatas e beatos. Ele era afável, falava palavras doces e sempre recebia os fiéis com um sorriso leve na boca. Como a vida ia bem (acabara de conseguir um estrondoso sucesso no afã de bom pastor e bom gestor), abusou do vinho, uma das poucas vantagens do cargo, e adormeceu fundo na cadeira de balanço colonial da casa pastoral.

O vigário dormia o sono tranquilo e gostoso do sucesso. Sucesso é bom, como bom é o reconhecimento pelo trabalho sério realizado. Junto com o sono, o nosso personagem sonhou os sonhos dos justos. Só sonha bem os que são sérios, ético e cumpridores de obrigações, principalmente a obrigação de trabalhar pelos mais fracos.

Estava o vigário a dormir, quando entrou o sacristão. Tinha muito que conversar com o chefe. A vitória estrondosa no último pleito lhe dava o direito de dormir, mas as coisas não estavam tão boas quanto a margem de vitória apontava.Havia problemas no rebanho que mereciam ser acessados. O resto da equipe não se antenava bem, quer por prevaricação, quer por desleixo ou incompetência. A eficácia das ações era sempre afetada. Prejudicada ficava sempre a excelência dos resultados.

E o vigário dormia e continuava a dormir. Chegou a roncar algumas vezes, sinal que estava completamente entregue à paz da sua consciência. Os ruídos do processo vinham do baixo comprometimento da sua equipe, não da falta de responsabilidade dele. O sacristão hesitou. Que direito tinha ele de interromper tudo aquilo? Teria o direito (ou a obrigação) de acordar o velho pastor de supetão? Deveria correr o risco de parecer chato ou inconveniente?Deveria esperar um pouco mais? E se os problemas se avolumassem? Deveria simplesmente desistir e arriscar o pejo de irresponsável? O vigário era maior de idade e devidamente vacinado. Era experiente e deveria saber enxergar. Deveria saber ler bem nas entrelinhas. Ele (o sacristão) era o assessor. Tinha sido preparado para isto. Tinha a obrigação de acender o sinal amarelo para o vigário, principalmente agora que ele estava sob efeito de muito vinho. Tudo isto lhe passava pela cabeça.

A afirmação que a crítica deve sempre vir acompanhada por uma alternativa não se sustenta quando o grito de dor não pressupõe que o faminto conheça os mecanismos da fome. O intelectual analisa os fatos baseado em dados conhecidos. Ele tem a vantagem de comparar situações em outro tempo e em outro espaço. Não é o caso do estadista que tem que tomar decisões e estabelecer rumos em cima da hora. O vigário é o nosso estadista e o sacristão o intelectual. Essas considerações colocaram o nosso intelectual bem à vontade para intervir.

Não foi preciso, porém, sacudir o vigário, nem gritar para acordá-lo. Ele abriu os olhos e despertou de repente. De olhos abertos, embora ainda sob leve efeito do vinho, ouviu o discurso do seu fiel servidor. A situação, concordou, não era das melhores. Bocejou, pareceu ter tomado pé da real situação, e resolveu ser mais exigente dali pra frente, como prometeu mais cuidado na escolha dos seus auxiliares. Afinal, estava ciente que o Bispo Diocesano e os paroquianos estavam de olho nele e dele esperavam melhores resultados.

 

Francisco Nery Júnior

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