Prefeitura suspende atividades, em decorrência da infecção de servidores pela covid-19
Nada está normal, por Marli Gonçalves
Nada. Nadica. Absolutamente nada. Não é só aqui, não. É como se estivéssemos, terráqueos, em suspensão, pendurados pelos mamilos em ganchos, ou inertes, flutuando em gravidade zero. Parece que está todo o mundo esperando uma decisão, todos cheios de incertezas, e de toda ordem. Parece quando esperávamos que alguém ligasse no fixo e íamos toda hora ver se o telefone estava funcionando, se dava linha, se estava no gancho.
O inverno nem bem chegou e já há verdadeira queima de estoque de coisas do próprio. Nunca vi assim, todo mundo ao mesmo tempo fazendo liquidação, sale, oferta, off, desconto progressivo, ou até preço único, tudo por tal, por tanto, o que me cheira a um grande mistério. Se tudo podia ser vendido a esse preço, por que não o foi antes? Ou, quem chegar primeiro, com dinheiro, e entender melhor de negócios, rapa os produtos que realmente estarão mais baratos? Mas, enfim, tudo na bacia das almas, e se nem o tal Eike tem mais dinheiro, imagina a situação. Economia em frangalhos e a maldita voltando, infiltrada, remarcando com aquele barulho de maquininha de supermercado.
É risco de rico. Coisas, pessoas e fortunas derretendo mais do que a calota polar em tempos de aquecimento global. Reputações que eram já eram, e as que já eram ruins pioram ainda mais. Se havia índice de confiança o ponteiro está no vermelho, junto com as contas a pagar. Na verdade verdadeira daqui a pouco vai estar todo mundo fazendo workshop com os índios para aprender como – quando ainda índios – eles vivem com tão poucos itens, parece que 80, ouvi certa vez. Vou gostar muito de ver mais gente de tanga.
Nada está normal e não me venha dizer que exagero. Estar normal seria tão tranquilo como quando as mocinhas casadoiras completavam esse curso, o Normal, no Brasil. Antes, dava para ser freira. Ou normalista. Fora disso a mulher já era vista como revolucionária ou coisa pior. Estar normal é não ter muitos abalos, aquela vidinha pacata seguindo seu curso, uma certa rotina, monotonia. Qual o quê! Faz tempo que isso não rola. Montanha russa. Bicho da seda. Trem fantasma.
De um mês para cá, especialmente, quem pode se dizer “normal”? Vai pegar uma estrada? E se ela estiver bloqueada? Ah, marcou um compromisso ali naquela avenida famosa de sua cidade? Já consultou a agenda de manifestações do dia? Só essa semana, aqui em São Paulo, onde as coisas até que estão, digamos, mais tranquilas, teve um dia em que a Avenida Paulista registrou três passeatas, protestos ou assemelhados de uma vez só. No dia seguinte, do que contei daqui, foi fechada cinco vezes, dos dois lados da pista, por tudo quanto é motivo, juntando um, dois, ou 50 gatos-pingados, que agora cada grupinho quer carregar seu cartaz objetivamente. A coisa está até engraçada. “Foi a passeata que menos barulho fez!” – ouvi de um brincalhão quando este soube que um dos protestos era dos deficientes auditivos. Abafa o caso.
Negócios? Todo mundo com medo. Futuro, planejamento, previsão? Tudo no espaço. Se for falar modernês, nas nuvens.
Noticiário? Bomba, bomba,bomba. Em algum lugar elas pipocam, letais e não-letais, com gases ou sem gases. Em Campinas, no país da piada pronta, querem pintar os manifestantes de rosa para identificá-los. Quando você pensa que está entendendo uma coisa, ela já é outra. Nem dá mais para se indignar direito: matam friamente uma criança atrás da outra; sacaneiam animais; nos golpeiam e debocham de nós. Insistem em nos jogar uns contra os outros.
Socorro! O piloto sumiu! Baratas tontas, parece que inalaram spray de pimenta jalapeno ou só o inseticida, puro. Anuncia uma coisa, fazem outra, depois dizem que não anunciaram não. Você que estava “viajando”; era só uma “alternativa”. Vai ser isso. Não! Vai ser aquilo! E se tentássemos isso? Vamos nos reunir para discutir, mas não vai dar tempo de fazer agora porque ficamos muito tempo reunidos. Meu sábio pai, que já viveu quase um século e viu vários momentos desses, acompanha o noticiário político como se fosse um jogo, e xinga o juiz, os bandeirinhas e os jogadores em campo. Aquilo até parece que lhe dá mais vigor. Pelo menos ele vem atualizando de forma impressionante os xingamentos que resmunga. Piiiiiiiiiii!
Estamos apreensivos, com palpitações. Os mais jovens palpitam e são apreendidos. Se tem revolução lá fora, lá longe, acompanhamos como se fosse aqui, porque rebate na área. Nada mais é muito natural, e isso além de silicones e outras mágicas. A onda é alta e estamos surfando na crista dela, com um mar revolto.
Puxa, como gostaria de escrever sobre a poesia, a beleza do voo dos pássaros, mas quando olho e vejo aviões eles acabam é me lembrando que quem hoje voa por nossa conta já tentou cortar as nossas asas. Muito triste tudo isso. Muito triste.
O Estado está estarrecido, de mão dada com a Nação. O estado é de atenção.
São Paulo, diariamente, 2013
Marli Gonçalves é jornalista – – Não me admira que eu tenha ido parar no hospital com um tilt que até hoje não entendi de onde veio, e achando que estava mesmo morrendo. Nada está normal. Mas, enfim, estou aqui ainda, o que deve estar querendo dizer alguma coisa. Ou não.