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O muro que dividia a minha cidade
Por *Dimas Roque
Sempre que eu ouço falar do muro de Berlim, mais especificamente da data de sua queda em 9 de novembro de 1989 depois de 28 anos de existência, eu me lembro que a minha cidade também já teve o seu muro. E ele dividia literalmente a cidade ao meio. Desde o Bairro Tapera, onde passa o leito do rio São Francisco, até o outro lado da cidade, onde fica o início do cânion da Cachoeira de Paulo Afonso. Que inspirou Castro Alves em poema que leva o nome da cidade e serviu de título, “a cachoeira de Paulo Afonso”, para um de seus livros lançados no ano de 1876, extraído da obra “os escravos”.
Dos tempos de criança ainda me lembro das brigas que eram marcadas entre os que moravam no acampamento Chesf, empresa do governo federal, e os que moravam na “Vila dos Cata Osso”, como éramos chamados. Era sempre uma lá dentro, e uma cá fora. Em uma delas, ao ver os mais velhos passando por dentro da valeta do esgoto. Esta, que era uma das possibilidades de se ter acesso sem ser incomodado pelos guardas. Eu fui atrás, mal chegaram no “poeirão”, campo de futebol de terra batida, o “pau comeu” no centro. E eu de longe só vendo aquilo, depois de uns 10, 15 minutos, nosso pessoal saiu correndo, buscavam chegar ao muro para não serem atropelados pelos cavalos e pegos pelos “pivôs”, assim eram apelidados aquela turma fardada dos guardas. Eles odiavam ser chamados assim.
Como a cidade era área de segurança nacional e vivíamos o período do golpe militar dado em 31 de abril de 1963, nós tínhamos barrada a nossa entrada. E este era um dos motivos que ninguém da “Vila Poty” aceitava. Eram raros os dias em que não se via alguém pulando o muro, que primeiro foi feito com arame farpado e depois com pedra, cimento e arame. Nos sentíamos humilhados, já que do lado de dentro as casas eram melhores, as ruas todas calçadas, enquanto do lado de cá os esgotos corriam a céu aberto nas portas das casas. Lá, ninguém pagava o consumo de água e energia. Cá, o valor sempre foi exorbitante. Quem quisesse sair, podia, e retornava sem precisar se identificar. Mas os rejeitados, tinham quatro guaritas onde teriam e precisavam se identificar. Sem o documento de identificação, eram barrados. Se pego nas dependências, fichados e tinham suas fotos afixadas em um painel na parede da sede da guarda onde todos podiam ver. Sempre foi uma humilhação o que sofríamos.
Os clubes sociais, onde aconteciam as festas eram dentro do acampamento. Era impossível querer que se entendesse que uns podiam se divertir enquanto outros não podiam chegar nem perto dos locais.
Foi a partir de 1978, com a greve dos eletricitários, que tudo começou a mudar. E assim como em Berlim, aqui era chegada a hora dele cair. E demorou ainda um pouco, mas aconteceu no ano de 1986.
O prefeito Biônico, conhecido como Chefe Abel, por ter sido líder dos Escoteiros da cidade, com seu metro e meio de altura, não gostou nada de ser barrado um dia em uma das guaritas. Enfezado, teve uma ideia brilhante que mudaria tudo rapidamente e com isto, o muro não demorou a cair. É que a Avenida Getúlio Vargas, a principal da cidade e que fazia o limite territorial entre as duas cidades, do lado que ficava o muro não tinha nenhuma construção. Lá existiam dois ou três barracos de venda de cachaça. Então, ele deu a amigos e apaziguados, terrenos desde que construíssem lá. E a visão que antes era a do muro, foi mudando aos poucos. Prédios para o comércio surgiram. Levantaram de um, dois e até três andares. Todos com a frente para a vila. Agora o muro era outro. Era o de cá para lá. E por quilômetros se tem hoje o fundo de prédios voltados para o antigo acampamento.
O muro caiu, levou mais de trinta anos para que isto acontecesse. Restam ainda algumas dezenas de metros dele espalhados pelo local. Acredito que não foi planejado que lá ficasse. Que aquela imagem hoje vista pelos jovens, sirva para que eles conheçam a história. E que em um tempo não muito distante, teve um povo no estado da Bahia, no Brasil, que foi divido ao meio e que a metade dessa gente, nunca se conformou em ser excluída do convívio social. E que muitos foram humilhados com palavras, gestos e prisões. Mas que nunca abaixaram a cabeça diante da situação.
Paulo Afonso hoje é uma só. Não há mais restrição de acesso aonde você queira ir. Vivemos harmoniosos, mas há algo que precisa ser mudado. A juventude que aqui nasceu, pouco, ou nada, sabe do que um dia aconteceu. E isto não é bom. Não conhecer o passado do seu povo e a história da sua cidade, é viver sem conhecimento. Um povo sem conhecimento é levado ao fracasso. Revisitar a história é sempre bom para acrescentar detalhes que ficaram para trás.
*Jornalista. Empresário da área de Eventos, bacharel em Turismo.
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