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Com a estiagem, cidade de Canudos volta a aparecer após 17 anos
Seca fez o Açude do Cocorobó, construído em 1968, baixar o seu nível em nada menos que 11 metros, fazendo aparecer ruínas de Canudos
– Que desgraça de tanto tiro… Simbora daqui, pelo amor de Deus!
São as balas das espingardas bate-bucha zunindo nos ouvidos da volante. Na terceira investida do Exército sobre o Arraial de Canudos, o coronel Moreira César é atingido mortalmente.
Apesar de armados com fuzis, os 1,2 mil soldados do governo sucumbem à fé e à fúria da jagunçada e, ante a perda do seu comandante, resolvem debandar como diabos fugindo da cruz. É nesse momento que o Coronel Tamarindo, que assume a tropa, profere a frase famosa.
– É tempo de murici… Cada um cuida de si…
Mais de cem anos depois, detalhes daquela fuga, um dos capítulos mais marcantes da Guerra de Canudos – entre novembro 1896 e outubro de 1897 – são relatados com entusiasmo pelo poeta e guia turístico José Américo Amorim, 47 anos. Desta vez, o poeta está especialmente empolgado. Não é todo dia que se tem a oportunidade de contar essa história estando com os dois pés sobre o território da Canudos Velha, a pouco mais de 400 quilômetros de Salvador. Estamos no local exato onde, após uma quarta investida, o povoado construído por Antônio Conselheiro foi dizimado.
O poeta e todos que nas últimas semanas transformaram aquelas ruínas em local turístico devem essa experiência rara à seca. Foi ela que fez o Açude do Cocorobó, construído em 1968, baixar o seu nível em nada menos que 11 metros. Dos 245 milhões de metros cúbicos d’água (245 bilhões de litros), restam apenas 20%. A perda fez aparecer ruínas de duas Canudos: a Canudos conselheirista, que viveu as batalhas, e a Canudos pós-conselheirista, ambas inundadas pelo açude.
A última vez que algo parecido aconteceu tem pelo menos 17 anos, na seca entre 1996 e 1999. Com a nova seca, emergiram da primeira Canudos a base do cruzeiro defronte às duas igrejas do arraial, parte do cemitério onde estariam os restos mortais de alguns dos combatentes e a base de um canhão, uma matadeira de fabricação alemã. Da segunda Canudos, reconstruída no mesmo local, aparece hoje boa parte das ruínas de uma terceira igreja, edificada após a morte de Conselheiro, e uma ponte que dava acesso à cidade.
“Apesar dos vestígios mais evidentes serem da Canudos pós-conselheirista, a segunda Canudos foi construída na mesma área. Estamos pisando no centro da guerra”, diz José Américo. Do lugar, na margem esquerda do rio Vazabarris, é possível enxergar o Alto da Favela, na margem oposta. Ali ficava a campanha mais próxima que o Exército conseguiu estabelecer antes da matança final, a 300 metros do Belo Monte, também se chamava o arraial.
Normalmente, os atuais visitantes avistam a área inundada em que ocorreu a guerra a partir daquele ponto. O mesmo em que Euclides da Cunha se estabeleceu para escrever Os Sertões. “Mas a seca traz a possibilidade da visão a partir de quem estava em Belo Monte e enxergava o acampamento dos soldados. Isso é raro”, observa o poeta.
Xique-xique As lembranças de quando teve de deixar Canudos Velha seguem firmes na mente e no coração de Maria Antônia dos Santos, 73 anos. Vivia feliz com os pais e irmãos quando souberam da construção do açude. A água da barragem subiu da noite para o dia. Muitos tentaram resistir, inclusive sua família. “Saímos com água no pescoço. Por um lado foi uma tristeza deixar tudo para trás. Por outro, chegou água farta”, conta.
Ao retornar ao local, as ruínas ainda lhe emocionam. Afinal de contas, foi naquela igreja pós-conselheirista, a terceira construída no lugar, que se casou há mais de 60 anos. Dona Maria explica que as construções em forma de arco são da entrada da igreja e do altar. “E ali a gente se confessava com o padre”, indica.
Fato é que a seca cria um curioso turismo que só ocorre de tempos em tempos. “É a chance de ver de perto o cenário da guerra. É história, né?”, diz a estudante Janaína Coelho, 23 anos, que veio de Petrolina, em Pernambuco. Mas, além desse turismo histórico, há o turismo afetivo. “Inclusive filhos de Canudos que ganharam o mundo vêm de longe para conhecer parte de suas origens”, diz o historiador Manoel Neto, coordenador do Centro de Estudos Euclides da Cunha, na Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
Ainda que a seca continue, há pouco a se revelar da primeira e segunda Canudos além do que já existe. Apenas as bases das duas igrejas conselheiristas, feitas de pedra, ainda resistem abaixo do lodo do açude. Dos casebres do arraial, não existe mais nada. Até porque as construções eram de pau a pique.
Se voltar a chover e, como diz o povo canudense, o açude novamente sangrar (transbordar), tudo vai desaparecer. Se bem que, essa cidade tem como essência a resistência. Destruída pelo fogo da guerra, ressurgiu para ser apagada pela água. Reapareceu pela terceira vez em outro local e hoje segue viva. No presente e no passado. E a cada aparição das suas ruínas, aqueles que têm o mínimo de imaginação, talvez consigam ouvir a munição das espingardas bate-bucha zunindo nos ouvidos.
Arqueólogos realizaram estudos na década de 90
Ao fazer ressurgir o Arraial de Canudos, a seca que atinge o Sertão da Bahia mostra que não é só sofrimento. A aparição das ruínas possibilita, entre outras coisas, o estudo do local.
Na última seca, na década de 90, uma equipe de arqueólogos trabalhou nas ruínas durante 20 dias. Era preciso aproveitar a chance antes que voltasse a chover. Na época, foram desencavadas ossadas, cartuchos de balas, estilhaços de granada. Foram retiradas a lama e o entulho que cobria alguns monumentos. “É a Teotihuacan sertaneja”, disse à revista Veja na época, referindo-se ao sítio encontrado na Cidade do México, o arqueólogo Paulo Zanettini.
Na década de 80, já havia sido criado o Parque Estadual de Canudos. Hoje, no parque, há preservados vestígios da guerra não submersos, como quatro trincheiras conselheiristas que tentaram barrar a aproximação das volantes.
‘Inundação de Canudos foi um equívoco’, dizem historiadores
O ressurgimento das ruínas da velha Canudos serve para demonstrar o equívoco que foi a construção do Açude do Cocorobó, que inundou a área onde aconteceu a guerra. Pelo menos é essa a visão de historiadores que estudam o fato. Para Manoel Neto, coordenador do Centro de Estudos Euclides da Cunha da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), a submersão da cidade foi um erro tanto histórico quanto econômico.
Histórico porque coloca sob as águas vestígios da memória de um episódio importante. “Toda vez que essas ruínas ressurgem é uma oportunidade de rediscutirmos como a memória popular é tratada no Brasil. Jamais inundariam aquele lugar se ali existisse um antigo palácio ou um monumento militar”, critica Manoel Neto.
Mas, acredita, o açude também é um erro econômico. “A renda que o turismo poderia trazer para a região seria maior que os benefícios do açude, que, aliás, é subutilizado”. Eldon Canário, que foi morador da velha Canudos e escreveu cinco livros sobre o tema, concorda. “A seca continua. O problema da água ainda tá lá. Enquanto isso uma parte da história segue apagada. Para nós que nascemos lá, fica a frustração”, diz Canário. “Esse açude foi mais uma forma de encobertar a vergonha nacional que foi a guerra”, emenda o pesquisador e espécie de guia turístico oficial da cidade, José Américo Amorim. Ele diz que a seca entre 1996 e 1999, mais intensa, revelou mais do que a atual. “Por enquanto. Porque a tendência até novembro é piorar”. Naquela época, além da base do cruzeiro, do cemitério, da base do canhão e da igreja pós-conselheirista, emergiram ruínas das duas primeiras igrejas, ponto de maior resistência do conflito.
Na frente da Igreja de Santo Antônio, também conhecida como Igreja Velha, edificou-se um cruzeiro – um pedestal com uma cruz. No pedestal havia uma placa onde se lia: “Edificada em 1893. A.M.M.C”. O A.M.M.C são as iniciais de Antônio Mendes Maciel Conselheiro. A placa e a cruz de madeira foram retiradas do local às vésperas da inundação e hoje estão guardadas no Memorial Antônio Conselheiro, na Canudos de hoje, a 10 quilômetros de distância da Canudos Velha, para onde foi transferida a população.
Fonte: Correio da Bahia, 05/05/2013
Foto: Alexandre Lyrio
1 Comment
Excelente artigo!
Relendo “Os Sertões”, só reafirmou para mim a importância desse sítio e dos acontecimentos a ele relacionados.
A memória não pode sera apagada, mesmo com 245 bilhões de litros de água.
Otacílio