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Kuduro: a dança sensual angolana que vai apimentar o carnaval de 2012
Neta de angolanos, Quitéria Chagas explica os movimentos complexos e a bossa que vão acompanhar as paradinhas da bateria da Vila Isabel
É uma visão perturbadora: Quitéria Chagas dançando o kuduro. Os movimentos são (aparentemente) simples. Primeiro, o tronco: apoiam-se as mãos nos quadris, fechando e abrindo. Depois, flexiona-se o joelho e empina-se o traseiro. Os joelhos se mexem para dentro e para fora; e as mãos se agitam de acordo com a abertura dos joelhos, mas em sentido contrário. Dito assim, na fria letra, fica impossível de reproduzir a beleza, o magnetismo e a sensualidade dos movimentos. O fato é que apesar do nome – kuduro –a dança apresenta um incrível molejo. Cadê a dureza?
Passa longe, quando quem se mexe é Quitéria Chagas, que vai mostrar essa fusão de Angola e Brasil à frente da bateria da escola de samba Vila Isabel, cujo enredo para o desfile de 2012 – Você semba lá, que eu sambo cá! O canto livre de Angola – homenageia o país africano. Quitéria esteve três vezes em Angola, terra de avô materno, a última das quais depois de participar como atriz da novela Páginas da vida, de Manoel Carlos, que fez enorme sucesso por lá. Na primeira viagem, ao visitar a capital Luanda, foi apresentada ao kuduro, antes mesmo de o ritmo e a dança servirem de inspiração para estrelas da música pop como Riahnna e Beyoncé (que, diga-se de passagem, não têm nem a beleza nem o rebolado da brasileira).
“Foi olhar um grupo de jovens dançando o kuduro e imediatamente eu sabia que poderia fazer igual. Estava no sangue”, diz Quitéria. “Também aprendi a tarrachinha, a dança mais sensual que existe. Os corpos colados se confundem no ritmo lento, é praticamente fazer sexo com roupa”, compara.
O sambista e romancista Nei Lopes – que também é lexicógrafo, etimologista, enciclopedista – explica que a expressão angolana kuduro é tida como equivalente à nossa “cintura dura”. “Mas não acredito que seja isso. Em minha opinião, kuduro tem a ver com o termo kudulu, que vem do quicongo, umas das línguas de Angola. Kudulu é uma espécie de ralador usado para preparar a mandioca. É uma referência ao instrumento do tipo reco-reco que anima a dança”, opina Nei.
Seja como for, o kuduro já é uma febre nos ensaios da Vila Isabel. A ideia de mostrar a dança na Marquês de Sapucaí surgiu em conversas de Quitéria com Mug, diretor de bateria, e com os mestres Paulinho e Wallan, responsáveis por comandar mais de 300 ritmistas na avenida. “No carnaval não se pode forçar a barra. Não vale inventar por inventar. Como o enredo da Vila fala de Angola, o kuduro tem tudo a ver”, acredita a dançarina e atriz que, após deixar o posto de Rainha de Bateria do Império Serrano, agremiação pela qual desfilou de 2006 a 2010, aceitou o convite para ser Musa da Vila Isabel.
Aos 31 anos, nascida e criada na Tijuca, a mulata Quitéria Chagas encarna – em impecáveis 56 kg distribuídos por 1,70 m – aquilo que o carnaval tem de melhor e mais criativo: a mistura de tradição com inovação. Ela foi descoberta na quadra da rua Edgar Romero pelos olhos espertos de Tia Eulália, em cuja casa foi fundado o Império Serrano. “Você faz como a gente fazia”, decretou a pioneira, referindo-se ao jeito de sambar “costurando o chão”. Ao mesmo tempo, ao assumir o lugar de destaque à frente da bateria da escola verde e branca de Madureira, Quitéria resgatou e aperfeiçoou as novidades introduzidas por passistas como Sônia Capeta, da Beija-Flor de Nilópolis, craque na arte do “bambolê” (uma das variações do miudinho) e do “ponta-leve” (em que a dança se realiza todo o tempo na ponta do pé). “No segundo movimento do kuduro, quando ponho o bumbum para trás e flexiono os joelhos, fico praticamente na ponta dos pés, é muito difícil. Em Angola, eles dançam descalços ou de tênis. Eu vou em cima de um salto de 13 centímetros”, ela conta.
Hoje tradicional, a paradinha da bateria – durante a qual Quitéria irá se exibir, ao som apenas de atabaques – já foi uma novidade e tanto. Reza a lenda que o não menos lendário mestre André, da Mocidade Independente de Padre Miguel, a inventou sem querer. Era o ano de 1959. O regente escorregou no meio da avenida Rio Branco, e a bateria nota 10, impactada, parou de tocar no susto. Ele, ao se levantar, apontou para o repique e a orquestra, então menos de 30 homens, voltou a bater como se nada tivesse acontecido.
A nova bossa – com os instrumentistas parando de tocar e retornando no tempo certo – foi ensaiada e repetida nos desfiles seguintes da Mocidade, levando o público ao delírio. Acabou sendo copiada por quase todas as escolas, com maior ou menor êxito. E com algumas invenções feitas a partir da primeira invenção: a paradinha com batida funk que mestre Jorjão introduziu na Viradouro em 1997 – polêmica, mas bem realizada – e a paradinha em ritmo de baião, com direito a zabumba, sanfona e triângulo, que mestre Marcão mostrou no Salgueiro no desfile deste ano.
“A bateria é o grande foco de experimentação no carnaval”, afirma o jornalista Fábio Fabato, que se prepara para lançar em janeiro o livro “As três irmãs: como um trio de penetras arrombou a festa”, escrito a seis mãos com Alan Diniz e Alexandre Medeiros, contando as histórias de Mocidade Independente, Imperatriz Leopoldinense e Beija-Flor. Fabato lembra a importância do ritmista Sebastião Miquimba, que criou, na escola de Padre Miguel, o surdo de terceira, hoje comum em quase todas as agremiações. “Há também as invenções ruins, que viraram micos históricos. Em 2007, a Viradouro resolveu botar a bateria em cima de um carro alegórico. Não deu certo e todo mundo voltou para o chão no ano seguinte. Os ritmistas ficaram presos à alegoria”, conta ele.
“Acho que as bossas estão exageradas”, comenta o historiador Luiz Antônio Simas, autor do livro “Samba de enredo: história e arte”, escrito em parceria com o romancista Alberto Mussa. “Querem inovar tanto que vez por outra esquecem que a função primordial da bateria é segurar o ritmo do samba. Bateria que faz muita bossa está mais preocupada em jogar para a plateia. A competência de uma orquestra de percussão se mede pelo peso sonoro e pela cadência do ritmo. Firula demais atrapalha e dá uma falsa impressão de dificuldade”, completa Simas.
Para Paulinho, mestre de bateria da Vila Isabel, não há mistério. “O risco é nenhum. Não há chance de a bateria ser penalizada por causa da paradinha ou do kuduro. Tudo está muito bem ensaiado, a integração entre os ritmistas e a Quitéria é perfeita”, garante ele.
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