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Caminho de Salvador à Costa do Sauípe revela ‘dois mundos’ da Copa
Na pequena “Cidade Fifa” em que foi transformado o complexo turístico baiano, circulam bicicletas laranjas patrocinadas por um banco. Os restaurantes não servem cervejas que não sejam as patrocinadoras do evento. A sinalização indicando tendas, hotéis e áreas VIP traz a inconfundível identidade visual da entidade máxima do futebol.
Uma árvore de Natal instalada em um dos canteiros de entrada foi decorada com as bandeiras de todos os 32 times que serão sorteados nesta sexta-feira, revelando a sorte (ou não) das seleções e os adversários que vão enfrentar a partir de 12 de junho do ano que vem.
Mas em Salvador basta perguntar a um soteropolitano sobre os problemas da cidade, que violência, falta de transporte público e trânsito estão na ponta da língua – e a situação não parece melhorar com a Copa se aproximando.
Os índices de homicídio na Bahia duplicaram na última década, e a região metropolitana de Salvador – recentemente destacada em reportagem do New York Times como “a capital dos homicídios” no Brasil – inclui dois dos cinco municípios com maior taxa de homicídios no Brasil – Simões Filho e Lauro de Freitas, segundo o Mapa da Violência 2013.
O alto índice de assaltos pela cidade levou os estudantes de ciência da computação Marcio Vicente Gomes Filho e Felipe Barbosa Santos, ambos de 22 anos, a desenvolver o site Onde Fui Roubado.
O portal é uma espécie mapa dos assaltos na cidade. Usuários informam onde foram roubados e podem visualizar as áreas com mais ocorrências na cidade, muitas não registradas em delegacias.
“A violência aqui em Salvador incomoda todo mundo”, diz Marcio. “A gente está sempre com medo de ser assaltado, não consegue andar com tranquilidade na rua. O site pode ajudar as pessoas a se prevenirem.”
‘Só a parte boa’
Nos resorts de Costa do Sauípe, o evento da Fifa tem um forte esquema de segurança. Só entram pessoas credenciadas, e o público geral não pode chegar perto.
“Só estão mostrando a parte boa, né? O filé”, diz o vocalista de pagode Álvaro Souza Júnior, de 40 anos. “Lá não vai ter ninguém para protestar nem falar nada.”
Júnior estava entre milhares de torcedores do Bahia que, na última quarta-feira, torravam sob um sol escaldante na fila da Arena Fonte Nova, na luta para comprar ingressos para o jogo contra o Fluminense no domingo, pelo Campeonato Brasileiro.
Ali, torcedores não escondiam a ansiedade para saber quais adversários a seleção vai enfrentar. Mas o isolamento do evento em Costa do Sauípe parecia reproduzir a distância que muitos disseram sentir em relação ao campeonato em si.
“Animado, mesmo, eu não estou, porque queria ter acesso aos jogos mas não vou ter, é tudo muito caro”, diz Jorge Luiz Santos Silva, um motoboy de 48 anos que “já saiu da maternidade vestido de torcedor do Bahia”.
“Essa Copa não é uma coisa visada para o povo brasileiro. Está sendo feita para que se tenha uma imagem melhor do Brasil lá fora. Enquanto isso, a segurança aqui é ridícula, o transporte público é ridículo. Vivemos uma estrutura política muito danificada”, reclamava.
Nascido em Salvador em uma época que a cidade “era mais pobre, mas mais elegante e bem-cuidada”, o antropólogo e escritor Antonio Risério diz que hoje a cidade está “abandonada e mal-tratada”, sofrendo com a violência que reflete a sua profunda desigualdade.
Ele diz não perder um jogo de futebol, mas lamenta o que está sendo feito para a Copa do Mundo em Salvador e em outras cidades brasileiras – ou melhor, deixando de ser feito.
“De modo geral, acho que a gente vai perder uma grande oportunidade”, diz, dando o exemplo da transformação ocorrida em Barcelona ao sediar os Jogos Olímpicos.
“Aqui, temos um bando de governantes medíocres que não têm a menor noção de urbanismo e arquitetura, que só pensam em cimento, cimento, cimento e não consideram aproveitar a Copa para redesenhar suas tramar, pensar em soluções para seus problemas.”
“Já Sauípe é um lugar horroroso, kitsch, falso. É a cara da Fifa”, diz.
‘Abertura’ da Copa na Bahia
Para o governo estadual da Bahia, entretanto, ter conseguido atrair o sorteio para o complexo de resorts foi uma grande vitória. Dos R$ 26,4 milhões gastos no evento, R$ 6,4 milhões são do governo.
De acordo com Ney Campello, secretário estadual para assuntos da Copa do Mundo, esse dinheiro bancou a construção das estruturas temporárias – inclusive a gigantesca tenda para abrigar o sorteio, com 9 mil metros quadrados, pé direito de 14 metros e capacidade para 1.700 pessoas.
A visibilidade que o evento dá para o Estado é o principal retorno para o investimento.
“A gente costuma dizer que, de alguma maneira, a Copa está sendo aberta na Bahia”, diz. “É como se o sorteio fosse o primeiro grande jogo”, diz Campello.
Mas ele destaca também a experiência que empresas baianas ganham em sediar eventos desse porte e a criação de 1.500 empregos temporários.
Romário Leite de Souza, de 19 anos, já nasceu com o destino entrelaçado ao futebol, no dia 23 de julho de 1994 – seis dias depois de o Brasil se tornar tetracampeão mundial na histórica disputa de pênaltis com a Itália. Foi batizado pela mãe em homenagem ao “Baixinho”.
Em Costa do Sauípe, ele desenrolava cabos para ajudar na montagem da zona mista onde gigantes do futebol têm dado entrevistas e posado para fotos no evento.
Romário foi contratado por uma produtora para trabalhar no sorteio e não se incomoda com a distância de realidades entre Sauípe e Salvador, onde mora na região suburbana, perto da linha do trem.
“As pessoas que vêm para Salvador pensam muito em violência, roubo, tráfico. Aqui elas vão ver muitas coisas boas, não vão pensar só nas coisas ruins que a gente tem.”
Júlia Dias Carneiro
Enviada especial da BBC Brasil à Costa do Sauípe