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O amor de Ceiça e Boca Aberta por Janio Ferreira Soares
Ela parecia uma dançarina dessas bandas com nome de fruta. Baixinha, coxas malhadas, ancas desenvolvidas e uns olhos, ah!, os olhos eram puro mel de uruçu e suas respectivas funções curativas, uma vez que também possuíam a fama de aliviar dores do corpo e sofrências da alma (dizia-se que fitá-los era o mesmo que tomar paracetamol diariamente sem a ameaça de futuras complicações hepáticas, ou um monte de Rivotril sem o risco da temida dependência química).
Ele tinha um aspecto meio neandertal revelado em maior dimensão na hora de comer um pedaço de carne assada com sua acentuada mandíbula, ou no jeito gutural de chamar seus animais antes de servi-los restos de comida trazidos da cidade na carroceria de sua Pampa. Moço velho – mais pelas circunstâncias do que por opção -, vivia sozinho numa casinha sem energia nem banheiro na companhia de um rádio de pilha, um cachorro e a imensidão do Raso, àquela altura mais dele do que da Catarina.
“Você precisa de uma fêmea pra esquentar esse pé chato quando a coruja pia! ”, vivia lhe dizendo um meeiro que ainda hoje divide com ele o quase nada que resulta da lida. Boca resmungava rascunhos de palavras e sumia no meio do mato com seu apertado calção de malha enfiado no rabo ou, como se dizia antigamente, cozinhando arroz.
Tardinha chegava e a cena se repetia. Com um bule de café numa mão e um saco de bolachas na outra ele se aboletava embaixo de um tamarineiro azedo que nem o fel da vida, sintonizava o rádio na primeira Ave Maria que se dissesse cheia de graça e de lá só saía quando o próprio ronco lhe avisava que chegara a hora de se levantar pra ir dormir direito. E foi exatamente numa dessas madornas que Ceiça chegou.
A lua cheia suavizava satélites e o vento de espantar muriçocas fazia ranger um pé de angico pendendo para o poente quando ela, tal uma gueixa campestre, se postou mansamente ao seu lado e de imediato começou a demonstrar suas habilidades orais adquiridas em anos e anos de saracoteio com umbus e quixabas aplicando-lhe um delicado banho de língua na sola dos pés, provocando no velho Boca sensações tão prazerosas quanto o morninho que ele sentia ao fazer xixi na cama quando ainda era Boquinha.
Dia seguinte, assoviando Princesa na mesma levada de Amado Batista, a Screen Gems orgulhosamente apresenta: um novo Boca acordando sem maldizer o calcanhar virado na gota, nem ameaçando cachorro correndo atrás de galo pedrês e, pra conquistar de vez o coração da deusa da sua alegria, de banho tomado com sabonete, shampoo e demais caraminguás que o amor sugere (fato este que levou Boi Manso a um irônico mugido, como se dissesse: “poxa, o que não é capaz um velho pai de chiqueiro diante da possibilidade de uma vulva quentinha ao cair da tarde! ”).
E a cada dia findo os dois se descobriam mais, tanto nas preferências gastronômicas (ele, louco por bolacha mata-fome, achou lindo saber da paixão dela pela de maisena molhadinha no café), quanto nas músicas (os forrós de Luiz Gonzaga eram a cadência perfeita para o mexido das cadeiras até o sol raiar), ou ainda naquelas de natureza mais pessoais, onde ele, muito tímido, era o oposto dela, cujo alarido na hora H desencadeava urros de prazer nos animais ao redor, transformando aquele pedaço do sertão numa espécie de Arca de Noé orgástica (a propósito, essa algazarra era um problema para eles, que planejavam manter a relação às escondidas, sobretudo dos vaqueiros, Deus os livre e guarde de testemunharem algum dia Boca de joelhos como se rezando, enfiado até o talo em Ceiça, gemendo baixinho: “ai, meu Deus, ai meu deusinho, como é gostosa essa minha Ceicinha!”).
Como toda história de amor que se preza, gostaria que essa também terminasse com os dois cheios de filhos e felizes para sempre, mas a vida, bem, a vida, sabemos todos, é muito mais a recente definição de Caetano para a Bossa Nova, do que a pureza das respostas das crianças cantada por Gonzaguinha. E foi assim que a tão sonhada gravidez de sua amada virou seu pior pesadelo, quando, diante das complicações do parto de trigêmeos, ele soube-os todos mortos pela voz do veterinário chamado às pressas, que, apesar de ter jurado pela mãe, pai, tias e até por um pastor alemão de estimação levar essa história pra sua tumba, inocentemente caiu na besteira de tomar umas doses de absinto comigo e agora, qual Inês, Ceiça também é morta.
Na última vez em que estive por lá, uma cena de cortar o coração. Boca sentado numa cadeira de balanço com o olhar perdido em direção a quatro chocalhos pendurados no tamarineiro, três deles bem pequenininhos e com lacinhos rosas, confirmando, sim, que os anjinhos eram cabritinhas. Seu meeiro me conta que não sabe mais o que fazer, pois todo entardecer ele fica bebendo, bebendo e chamando o vento, só pra sofrer mais um pouquinho quando a brisa da noite chega e faz ecoar no silêncio do sertão o triste badalar de uma saudade. Pobre Boca.
Bahia Notícias – Sábado, 11 de Julho de 2015