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Ontem, eu vi a vida
Eu estava em Brasília. Eu era um jovem na Brasília dos anos setenta. Na nossa caravana, uma jovem a mais bonita de todo o congresso. Ela se apaixonou do amor mais puro e terno que se pode imaginar. O que vimos e presenciamos em Brasília estava muito além do que os grandes romancistas se esforçaram para descrever. O alvo da sua paixão, alguém mais velho e experiente, talvez por conhecer a paixão, não retribuiu a entrega total da moça. Assim a acompanhamos e procuramos ampará-la nós, todos nós, até o retorno a Salvador.
À noite em um dos dias, o orador, o melhor que ouvimos na temporada, afirmou ter visto o amor. Bendito o amor que permite ser visto através da paixão pura de uma vestal. O doutor Ebenézer Cavalcante, enciclopédia ambulante que tínhamos na capital da Bahia, havia visto o amor!
Ontem à tarde, já em casa, a campainha tocou. Era a minha vizinha da casa em frente. Estava chorando e foi logo dizendo: “O meu cachorro morreu”. Foi até o meu portão e tocou a campainha, como tocou o meu coração. O tocante foi ela ter visto, em mim, alguém que valorizava a vida. Ela me via como um eterno inconformado com a morte. Não fomos feitos para morrer. Morremos para renascer, mas morremos porque já estávamos mortos. Incentivada por mim, chorou aos cântaros e eu quase chorei. Apenas dois dias antes, tinha compartilhado com o cão agora defunto um petisco através do seu portão. Recebeu o presente, degustou, disparou um olhar fixo nos meus olhos, e se foi.
Nós o sepultamos no meu gramado. Está lá. Descansa no seio da terra, nos dando a impressão que não se foi. Forramos o seu corpo agora inerte com papelão, e o cobrimos definitivamente com a terra onde ficará para sempre. Colocamos uma pequena laje em cima e nos demos por satisfeitos. Um dia passaremos pelo menos processo. Algum amigo também tratará dos nossos despojos. Um dia, quem sabe, poderemos novamente sentir o seu fôlego e o sopro do balançar da sua cauda.
Certo que tinha retornado à rotina do rolar da existência, olhei para o lado. Vi o que parecia nunca ter visto. O meu cachorro, ao lado, olhava para mim. Nada de expressivo. Apenas estava vivo e interagia comigo. Vivia a vida que lhe foi concedida enquanto o seu companheiro jazia palmos abaixo da terra.
Pouco antes, desconsolado, eu lidava com a morte. Agora, ao lado, via claramente a vida. No meu cachorro, o sangue corria e a vida pulsava. Era a vida, leitor, bela vingança contra a morte. Não importa que Bertrand Russell tenha afirmado que o medo da morte é a visão do cadáver. O pavor e o desprezo que a ela dedicamos é o valor e a beleza que atribuímos à vida!
Fomos feitos para viver e viveremos a vida no melhor que ela pode nos oferecer em interação com os nossos semelhantes. O melhor para eles será o melhor para nós.
Deixemos agora, leitor, o amigo da vizinha – que se fez meu amigo – descansar na paz dos animais.
Francisco Nery Júnior