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Fila de espera para mudança de sexo em ambulatório no Nordeste chega a 13 anos
Duda Mel, de 38 anos, tomou hormônios por conta própria por mais de duas décadas até encontrar apoio médico gratuito e, há nove meses, dar o passo final para ver no espelho a imagem que refletia a identidade na qual ela se via.
A primeira bailarina clássica trans do Brasil fez a cirurgia de transgenitalização – mudança de sexo – no único espaço do Norte e Nordeste do país a oferecer o serviço por meio do Sistema Único de Saúde (SUS): o Espaço de Cuidado e Acolhimento de Pessoas Trans, localizado no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife. O ambulatório é referência na área, mas tem uma demanda muito superior à capacidade. Atualmente, a fila de espera para fazer a cirurgia é de 13 anos.
A estimativa é da psicóloga Suzana Livadias, coordenadora do Espaço Trans. Segundo ela, desde a inauguração do ambulatório, são feitas, em média, dez cirurgias de redesignação sexual por ano. A sala de cirurgia e dois cirurgiões são disponibilizados uma vez por mês.
Atualmente, 230 pessoas são atendidas pelo local. Dessas, 170 nasceram com a genitália masculina, mas se identificam como mulheres e cerca de 130 querem fazer a mudança de sexo. “Em tese, então, são 13 anos, pelo menos neste momento. Nosso sonho é aumentar para duas cirurgias por mês”, diz a psicóloga.
Além da fila para a cirurgia, existe uma demanda reprimida para atendimento psicológico no ambulatório. Cerca de 170 pessoas aguardam para iniciar esse tratamento, e quatro entram no serviço por mês. “A gente hoje está chamando a pessoa que se inscreveu em maio de 2016”, conta Mônica Mota, psicóloga que trabalha no Espaço Trans.
A transgenitalização de homem para mulher, uma das cirurgias de redesignação sexual, é garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2008. O serviço foi ampliado com a Portaria n° 2.803, do Ministério da Saúde, inserindo novos procedimentos hospitalares e métodos para a mudança de mulher para homem. Estão incluídos procedimentos cirúrgicos como a colocação de prótese mamária e a tireoplastia (mudança da voz), a terapia com hormônios e atendimentos especializados, psicológico e de assistência social.
A portaria estabelece regras para realização dos procedimentos cirúrgicos, entre elas, o acompanhamento psicoterápico por pelo menos dois anos e a necessidade de um laudo psicológico ou psiquiátrico diagnosticando a transexualidade.
“O expresso desejo e autodenominação é a primeira coisa. Seria autoritarismo demais definir quem vai e quem não vai. Ao longo dos dois anos se o desejo perdurar a pessoa faz [a cirurgia]”, diz a coordenadora.
Há ainda uma limitação de idade: 18 anos para atendimento no ambulatório e hormonioterapia e 21 anos para intervenções cirúrgicas.
Mais que uma cirurgia
Apesar da alta procura pela redesignação sexual, a coordenadora do Espaço Trans lembra que o ambulatório oferece diversos serviços complementares. Para ela, o atendimento integral garantido pela equipe formada por ginecologista, psicólogo, psiquiatra, urologista, fonoaudiólogo, endocrinologista e assistente social tem um papel mais amplo que uma mudança corporal: é a problematização de como a pessoa entende o seu gênero.
“Muitas vezes o entendimento é que para ser mulher ou homem você tem que passar pela cirurgia de trangenitalização. Se, desde o início, não é a genitália que definiu as pessoas como tal, então por que vamos afirmar que elas serão [homens ou mulheres] a partir da cirurgia? É um paradoxo, uma questão para pensar”, diz Suzana.
“O que é importante para gente é poder entender os sofrimentos vividos, de onde eles vêm. Se puder pensar direitinho quem tem que fazer a cirurgia é a sociedade, que entende o homem ou a mulher a partir apenas do corpo”, completa.
Luclécia Amorim, de 29 anos, é atendida há um ano e meio no Espaço Trans. Chegou com o objetivo de fazer uma cirurgia de transgenitalização. Mas, ao longo do processo de atendimento por uma equipe multiprofissional e das conversas em grupo, ela resolveu fazer somente a terapia com hormônios.
“Eu já era uma mulher independentemente do meu órgão sexual”, afirma. “Foi um processo super natural, nada induzido. A maturidade também ajuda muito. São dois anos, mas parece que são 20. E tudo que você vai passando, suas transformações corporais, você vai vendo que o que precisava era da imagem, não era a questão sexual, que estava muito bem resolvida. Meu problema era só com a estética. Eu precisava olhar no espelho e me identificar como uma mulher”, destaca Luclécia.
A agente de endemias Gyslaine Barbosa, de 28 anos, aguardou seis anos para conseguir ter o corpo que correspondia à identidade que ela carregava desde criança. Ela já era atendida no Hospital das Clínicas desde que a cirurgia era feita em uma linha de pesquisa científica. O serviço foi habilitado pelo Ministério da Saúde em outubro de 2014. Depois disso, Gyslaine ainda teve que esperar mais dois anos para cumprir as regras exigidas.
Moradora de Surubim, município localizado a 120 km da capital pernambucana, ela enfrentou uma rotina exaustiva para receber os atendimentos. “Meia-noite já tinha que pegar o ônibus para estar no hospital [de manhã]. E era duas vezes por mês. A gente não dormia, não comia. E, quando terminava a consulta ao meio-dia, ainda tinha que esperar o ônibus que passa às 17h recolhendo o pessoal. Quando eu chegava em Surubim já eram 20h, até chegar em casa era meia-noite.”
Ela conta que viveu como homem por muitos anos até que não aguentou mais esconder como se sentia. “Tive que crescer como um menino. Ninguém podia saber o que eu estava sentindo, o que eu era. Porque ninguém acreditava. Mas chegou um certo ponto que eu não aguentei mais. Eu tinha meu emprego, terminei meus estudos, era gerente de loja e cheguei no meu limite. Cheguei chorando na loja que minha irmã trabalhava. Eu desabafei: eu sou uma mulher, não sou esse corpo que eu sou. Só tenho dois caminhos: ou eu abro para todo mundo ou vou correr o risco de me matar.”
A bailarina clássica Eduarda Vitória Cassiano, de 38 anos, cujo nome artístico é Duda Mel, também fez parte do primeiro grupo atendido no ambulatório pernambucano. Sua história com a transexualidade começou aos 14 anos, em uma época em que se conhecia pouco sobre o tema. A cirurgia de redesignação, por exemplo, era proibida até 1997. A coragem de expor sua identidade de gênero veio da dança.
“Eu cheguei e disse a minha professora que ia sair do balé porque eu queria mudar mais o meu corpo. Ela disse que não, que não ia me abandonar. Ela foi como minha mãe”, conta.
Duda trabalhou como professora auxiliar por 15 anos. Por muito tempo dançou como menino. Mesmo assim, enfrentou preconceito.
“Teve uma escola que não aceitou o fato de eu ser auxiliar. Minha professora disse ‘onde não couber você não me cabe’. A gente foi para outras escolas que me aceitaram. Aí vieram as mudanças no meu corpo, meu cabelo eu deixei crescer”, conta.
Depois de mais de 10 anos, ela passou a dançar como menina, usando a sapatilha de ponta – só usada por mulheres.
Duda Mel diz que a cirurgia mudou sua vida. Nas aulas, as crianças a chamam de tia. E em casa, onde o espelho era proibido, hoje só em seu quarto há cinco deles. Coisas simples como usar um biquíni já não são um problema. E coisas maiores, como estar em paz consigo mesma, foram possíveis. A cirurgia, segundo ela, foi muito além da estética.
“[Quando eu era pequena] Eu pensava: vou passar embaixo do arco-íris e vou sair mulher. Eu vou dormir agora chorando, com raiva, e quando acordar eu vou acordar mulher. O arco-íris nunca chegou, mas hoje eu consegui.”
Agência Brasil